Nada como o silêncio depois da barulheira. Nada como a introspecção depois da euforia. Nada como voltar para casa depois de uma longa viagem. Assim nos mantemos em equilíbrio, porque tudo o que é demais desgasta e, por melhor que seja, o excesso acaba fazendo mal. Com o nosso corpo não poderia ser diferente. Então por que a culpa pelos momentos de descanso? Ou pior, como não descansar? É bom você saber que, se tem alguma coisa que não pode ser negligenciada no treinamento esportivo, é exatamente a recuperação. Se você leva o seu treino a sério, entregue-se à preguiça sem culpa quando o seu corpo pedir o merecido descanso. “O exercício é uma agressão ao organismo, tanto para o sistema cardiovascular quanto para o musculoesquelético. É durante o repouso que ele se adapta”, explica Caio D’elia, especialista em medicina esportiva. “E com a continuidade do treinamento, o que num primeiro momento foi agressivo deixa de ser e então as cargas podem ser aumentadas, resultando na melhora da performance.”
Na sua medida
Mais uma vez, vale ressaltar a importância da individualidade na periodização do treinamento. O descanso ideal para você após determinado estímulo com certeza não será idêntico ao dos seus companheiros de treino. Por isso é preciso estar muito atento às reações do seu corpo e compartilhar todas as impressões com seu treinador, antes de se impor mais um treinamento forte. Como o dos dias de tiros, por exemplo. “Há grande variação, entre corredores, no tempo necessário para recuperar ou adaptar-se em função de um treino”, diz Marcelo Augusti, treinador da assessoria Mr Running.
Essas diferenças são determinadas por fatores genéticos, estilo de vida (como dieta e qualidade do sono), saúde geral, idade (temos a tendência de nos recuperar mais devagar com a idade), sexo (os músculos das mulheres tendem a se recuperar mais lentamente devido a menores níveis de testosterona) e variados fatores de estresse, como trabalho e até relacionamentos. “Tudo isso influencia o quão rápido você se recupera e se adapta”, completa Augusti. as planilhas de treino normalmente são muito parecidas, e os dias de treino coletivo sempre são mais fortes e predefinidos, o que acaba levando muitos atletas a forçarem o ritmo sem estarem inteiramente recuperados. lembre-se de que a percepção de sua recuperação é sempre a referência mais segura para os eventuais ajustes em sua programação.
Se sentir que está precisando, descanse!“Treino corrida há dez anos e mantenho a distribuição dos treinos semanais da mesma maneira, com tiros na quarta, longos no sábado e descanso no domingo”, conta laércio Fontes, 47 anos, empresário e maratonista. “de repente, comecei a me machucar, na maioria das vezes com distensões musculares, e demorei a perceber que meu tempo de recuperação havia mudado. de quarta para sábado, dependendo da intensidade dos tiros, não estava totalmente recuperado para o longo, que também é muito desgastante.” o mesmo acontecia nas rodagens que ricardo fazia nos começos das semanas. “eu não sabia o que era correr devagar. dando um tempo maior quando preciso e investindo em treinos mais leves e regenerativos, muitas vezes até optando pela bicicleta, não tive mais problemas”, descreve Fontes.
Overtraining
tanto do ponto de vista fisiológico quanto do musculoesquelético é preciso uma recuperação adequada para que o atleta não entre em overtraining. em geral, o corredor acha que está recuperado por ter uma condição cardiorrespiratória muito boa e um limiar de desconforto muito alto, ignorando a linha tênue que separa esses dois parâmetros. “Forçar o ritmo em cima do cansaço gera o acúmulo excessivo de catabólitos (o produto final do trabalho intenso) e esses resíduos requerem tempo para serem removidos”, afi rma Gustavo Gonçalves, fisioterapeuta e especialista em fisiologia do exercício pela USP. “Já a musculatura fadigada perde o controle total de contração, gerando compensações que acabam resultando nas mais diversas lesões.”
Descanso ativo ou regenerativo
Para os “ligados nos 220 volts” existem saídas além do sofá e das perninhas para cima. as sessões de treino mais leves, também chamadas de regenerativas, podem ser tanto corridas mais leves quanto a prática de outras modalidades. este cross training, se utilizado de maneira moderada, pode ser muito interessante. mas quando for escolher uma modalidade para revezar com a corrida, dê preferência àquelas que trabalhem outras cadeias musculares, e faça as de maneira descontraída, para que do ponto de vista fi siológico não representem mais um estresse. atividades como natação, remadas, yoga ou alongamento, entre outras, que promovem o equilíbrio e não mais sobrecarga, são muito bem-vindas para o corredor, até mesmo nos dias de descanso. “Descanso ativo deve ser uma atividade que não atinge nem o limiar aeróbio — ou seja, não causa modificações ou adaptações no organismo —, mas é muito importante para atletas de nível intermediário em diante.
Seu objetivo é manter a musculatura oxigenada e ativa, auxiliando a remoção do lactato acumulado após treinos fortes, que entre outras coisas causa dor, acidez e limitação da contração muscular”, diz Marcelo Augusti. Tudo isso parece muito simples e fácil de ser seguido, mas o que acontece, principalmente entre corredores avançados, é que sua zona de conforto geralmente está na intensidade moderada e não na leve — eles têm muita dificuldade em realizar os treinos regenerativos abaixo do limiar aeróbio e nessas horas o frequencímetro é uma ferramenta muito valiosa. “É muito mais difícil para mim correr devagar, quando vejo já estou automaticamente correndo no meu ritmo de rodagem”, reconhece a publicitária Mariana Dias, 28 anos.
“Demorei para conseguir me conscientizar da importância desses treinos bem leves. Utilizo o frequencímetro para não passar do limite e me seguro para não me juntar aos amigos que estão correndo mais rápido. Mas principalmente quando aumentei o volume rumo à maratona, foi visível a melhora que obtive no meu rendimento nos dias de treinos fortes e nos longos”, diz ela.
Tempo mínimo
A literatura não dispõe de estudos que assegurem o tempo exato de recuperação para cada estímulo. Como já foi dito, esse tempo está relacionado com uma série de fatores variáveis: idade, sexo, estilo de vida... O que prevalece é o bom senso, com base na experiência e na convivência com os atletas, que fazem os treinadores considerarem determinado prazo como referência para planejar com segurança os intervalos entre os estímulos, considerando-os como mínimo. Por exemplo, as 48 horas consideradas necessárias para a recuperação de um treino intervalado de alta intensidade.
Esta referência é uma espécie de afirmação universal entre os treinadores. Mas mesmo este intervalo sempre varia de acordo com o atleta. Já as corridas longastêm uma variabilidade bem maior no tempo de recuperação do que os treinos de intensidade. “Isso porque é igualmente variável o tempo que cada atleta demora, mesmo correndo em ritmo constante, para ultrapassar seu limiar dentro de uma sessão de treino”, diz Augusti. “E isso está diretamente relacionado à sua condição física, que melhora com a continuidade dos treinos longos através dos anos.” Um estudo feito pelo russo M. Litovchenko, publicado no Caderno da Real Federação Espanhola de Atletismo, abordou o tema de maneira bastante coerente, afirmando ser a intensidade a variável que define o tempo de recuperação do atleta. Segundo Litovchenko, após uma rodagem de 16 km realizada no limiar 1, o atleta bem condicionado se recupera em no máximo cinco horas.
Dê um tempo
Períodos de recuperação, de acordo com o estudo de M. Litovchenko, com base na intensidade do exercício Treinamento de 8 km a 16 km com intensidade leve ou até 75% da frequência máxima: recuperação em 3 a 5 horas após a corrida.
Treinamento de 16 km a 25 km com intensidade moderada ou até 85% da frequência máxima: recuperação de 48 a 54 horas. Treinamento de 4 km a 10 km com intensidade forte ou acima de 85% da frequência máxima: recuperação depois de 54 horas.